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Lance de gigantes

Grandes bancos estão por trás dos maiores leilões em São Paulo. Bradesco e Itaú são os campeões de vendas

Marcos Coronato

 

Cena 1: Num sábado de sol, cerca de 1 000 pessoas — famílias inteiras, com filhos e gente idosa — observam com atenção um homem em um palco no Palácio das Convenções do Anhembi. Num misto de tensão e curiosidade, elas acompanham a venda de 105 imóveis, um a um. Cada oferta é conduzida habilmente pelo homem no palco como se fosse uma oportunidade única para adquirir a casa própria.

Cena 2: Numa tarde de quarta-feira de calor insuportável, cerca de 100 homens suam no salão empoeirado de uma rodovia na periferia da capital. O ventilador não ajuda a aliviar o mormaço. Aos gritos, os presentes disputam bens de todos os tipos, como um balcão refrigerado, um aspirador industrial e uma colheitadeira de cana.

Cena 3: Num salão com ar-condicionado, na avenida Paulista, 30 pessoas bem-vestidas — homens e mulheres — oferecem, com gestos discretos e voz baixa, lances por imóveis à venda. Uma mesa farta, com sucos, docinhos e salgadinhos, faz que ninguém tenha pressa de ir embora. Profissionais com computadores ligados em rede ajudam os novos proprietários a resolver, ali mesmo, questões como financiamento e outras pendências.

O que as três cenas acima têm em comum? São flagrantes de leilões em São Paulo, a capital nacional dessa modalidade de venda pública. Mas isso é apenas uma parte da história. Mais importante, na verdade, é a crescente presença de grandes bancos por trás dos leiloeiros. O pregão na avenida Paulista, por exemplo, foi feito só com imóveis da carteira do Itaú. Em uma tarde, o banco vendeu 30 dos 57 imóveis ofertados, vários deles com baixa liquidez, como um terreno de 300 metros quadrados no bairro de Pinheiros (arrematado por 107 000 reais) e um galpão comercial em São Bernardo do Campo (561 000 reais). Já o acalorado leilão de equipamentos na periferia da cidade oferecia bens de uma dezena de bancos e seguradoras. Eram 210 lotes de material industrial, agrícola e de escritório. Grande parte parecia pronta para virar sucata. Na mão do leiloeiro, porém, o material se transformou em dinheiro — cada lote custou algo entre 50 e 16 000 reais. A multidão de famílias no Anhembi, por sua vez, já virou tradição na cidade. É o megaleilão que o Bradesco promove a cada dois ou três meses. “Percebemos que tínhamos começado a mudar a história do leilão em São Paulo em agosto de 1999. Esperávamos 500 pessoas e apareceram 2 500”, diz Laércio Albino Cezar, vice-presidente executivo do Bradesco. “Tivemos de levar todo mundo para fora e colocar alto-falantes na última hora.”

Quem vê a organização despojada da maioria dos pregões não imagina o grau de profissionalismo do setor. Vá a um leilão e não estranhe se um sujeito na fileira de trás estiver prestando atenção em cada gesto seu. É um psicólogo contratado para avaliar o comportamento dos compradores. A análise ajuda o leiloeiro a entender o público, a saber quais falas e gestos acirram a competição — e garantem lances mais polpudos.

Uma estimativa do jornal Primeiro Lance, do Sindicato dos Leiloeiros do Estado de São Paulo, indica que os pregões movimentam 500 milhões de dólares por ano no Brasil. O número parece exagerado, a julgar pelos valores movimentados nos leilões que a reportagem de EXAME SP acompanhou durante um mês. Pode-se afirmar com segurança, porém, que o valor chega à casa de centenas de milhões de reais. Mais da metade gira no estado de São Paulo, e a maior concentração de negócios ocorre na capital. Somente os leilões de imóveis do Bradesco no estado arrecadaram mais de 60 milhões de reais no ano passado.

“Perto do leilão, os outros canais de venda de imóveis se tornaram inexpressivos para o Bradesco”, afirma o vice-presidente Albino Cezar. Os outros canais a que ele se refere são as vendas feitas pelo banco diretamente ao interessado e as vendas por meio de imobiliária. “O leilão garante uma relação custo-benefício muito melhor que a de outras formas de venda”, diz Luiz Cristiano de Lima Alves, diretor de suporte administrativo do Itaú. “A divulgação maciça, os preços atraentes e as boas condições de pagamento alavancam os preços no pregão”, afirma Gustavo Durazzo, diretor de recursos materiais do Banco Sudameris. A simplicidade do processo seduz. Os leiloeiros organizam toda a venda e, tradicionalmente, recebem uma comissão de 5% sobre o valor do lance vencedor, paga pelo comprador. Quando o bem é especialmente difícil de vender, o leiloeiro cobra comissão também do vendedor, de até 10%.

A proliferação dos pregões resultou, em primeiro lugar, do investimento realizado pelos profissionais do setor na segunda metade dos anos 90. Envolveu iniciativas um tanto exóticas, como a do leiloeiro Luiz Fernando Sodré Santoro, que contratou dez grupos de psicólogos para acompanhar dez leilões. O estudo, feito em 1996, rendeu dicas práticas ao leiloeiro — por exemplo, não usar gravata nem fazer a barba em dia de venda pública de sucata, pois os negociantes do ramo não se sentem à vontade com um leiloeiro empertigado. Outra tática é oferecer brindes, como bonés e camisetas, para melhorar o ânimo dos perdedores e garantir que eles voltem outro dia.

A maior parte do investimento dos leiloeiros, no entanto, foi mais convencional — basicamente, em profissionalização e tecnologia. “Tivemos de informatizar o trabalho para prestar conta aos bancos, nossos maiores clientes”, diz Ronaldo Milan, um dos maiores leiloeiros do estado (mais de 60% da receita de profissionais como ele provém de vendas feitas por bancos). “Começamos também a usar a internet para divulgar fotos digitais das mercadorias e passamos a prestar novos serviços, de recolhimento e guarda de bens.” Milan tem um banco de dados de mercadorias e preços coletados nos últimos 19 anos. Com isso, pode orientar o cliente — o vendedor dos bens — na hora de definir o lance mínimo a ser aceito. Os bancos e outros grandes credores (que precisam dos leilões para transformar em dinheiro os bens confiscados de devedores) reconhecem que organizar as vendas em massa não é tarefa para amadores. “Gasta-se bastante na organização, e, se o preço for mal definido, haverá prejuízo”, afirma o advogado Fernando Cerec, do escritório Tozzini, Teixeira, Freire e Associados. Empresas não financeiras, como a Arno, fabricante de eletrodomésticos, também elogiam o trabalho dos leiloeiros. “Eles conseguem juntar muitos possíveis compradores, mesmo para bens de baixa liquidez”, diz Rui Di Lascio, gerente de planejamento da Arno.

Crescendo com o calote
O segundo fator que impulsionou os leilões é bem conhecido. “Os leilões aumentaram devido ao crescimento da inadimplência”, afirma o advogado Cerec. É fato que o mercado dos leilões está umbilicalmente ligado a índices agourentos, como inadimplência e falência — que aumentaram bastante nos últimos anos. Em janeiro deste ano, segundo a Serasa, empresa de análise de crédito, foram devolvidos 14,5 cheques de cada 1 000 compensados, recorde desde a criação do índice, em 1990. O número de protestos contra pessoas jurídicas subiu 16% em 2001. Contra pessoas físicas, cresceu 108%. Cerec faz uma estimativa informal: um em cada quatro casos de inadimplência resulta na tomada de algum bem do devedor.

Os participantes do mercado de leilões — vendedores, leiloeiros e revendedores — detestam associá-lo a palavrões como falência, inadimplência e confisco. É compreensível. Eles temem ser vistos como tomadores de bens de pobres inadimplentes. Seja como for, os bancos aprenderam a usar com maestria essa modalidade de venda pública. O Bradesco começou em 1989 e tornou-se o maior vendedor por leilão do Brasil, seguido pelo Itaú. Imóveis, veículos e todo tipo de material entram em sua carteira como pagamento de dívida (uma pequena parte dos imóveis, veículos e equipamentos de escritório são bens do próprio banco que não interessam mais). A equipe sob o comando do diretor Armando Trivelato Filho organiza os bens em lotes e marca as datas de venda.

O Bradesco acredita ter encontrado o tripé do sucesso de um leilão: primeiro, escolhe locais conhecidos, como o Anhembi. Segundo, define datas e horários como as tardes de sábado — para tornar o evento um programa para toda a família — e agrupa os imóveis geograficamente, com a intenção de colocá-los à venda no mesmo dia. E, terceiro, investe em propaganda maciça. Graças a essa estratégia, nos cinco leilões que promoveu na cidade em 2001, o banco vendeu 440 imóveis (no Brasil foram 650 imóveis em 20 leilões). Outros 280 leilões menores realizados no estado durante esse mesmo ano venderam mais de 3 000 veículos e arrecadaram mais de 5 milhões de reais com materiais diversos. Toda a rede de agências é mobilizada para informar os usuários. Além disso, o banco usa intensamente a internet. “Quase a metade do nosso esforço de divulgação se realiza pela rede”, diz Albino Cezar. Atualmente, o próprio Bradesco organiza seus leilões de imóveis, cabendo ao leiloeiro apenas conduzir o evento. Já os pregões de outros bens — veículos, móveis, equipamento de informática, máquinas pesadas etc. — são organizados e conduzidos por leiloeiros contratados.

O Itaú vem se destacando nos leilões de veículos. No ano passado, faturou 25 milhões de reais com o leilão de 4 000 carros, motos e outros bens no estado de São Paulo. Na região metropolitana, realizou, em média, um leilão por semana. Os pregões respondem por 60% dos imóveis vendidos pelo banco, mas representam apenas 45% da receita (os 55% restantes vêm das vendas diretas e das imobiliárias). Isso significa que os imóveis são vendidos a preços menores nos leilões. Luiz Alves, diretor do Itaú, cita o número para mostrar que o negócio é bom também para o comprador. No melhor leilão do ano passado, em julho, o banco vendeu, sozinho, 83 imóveis em três horas. Todas as imobiliárias da cidade de São Paulo gastariam, juntas, pelo menos dois dias para vender o mesmo número de imóveis naquele mesmo mês. A meta do banco para este ano é fazer três leilões por mês — tudo divulgado pela rede de agências e pela internet.

Diante de tanto entusiasmo com essa modalidade de venda, surge a pergunta: por que os bancos não usam a web para realizar o próprio leilão, já que a rede é segura e eficiente o bastante para efetuar operações bancárias? “Ainda não nos sentimos confortáveis para fazer leilões online. As experiências do mercado não foram bem-sucedidas”, afirma Albino Cezar, do Bradesco. “O mecanismo ainda precisa ser ajustado”, diz Luiz Alves, do Itaú.

Quem dá mais?
Como os bancos ainda dependem de um ambiente físico e de um sujeito com um martelo lá na frente para vender, esses profissionais tiveram de se adaptar a uma nova escala de demanda. Basta observar o que fizeram alguns dos 232 leiloeiros oficiais do estado de São Paulo nos últimos quatro anos. O maior deles, Luiz Fernando Sodré Santoro, com 23 anos de leilão, aumentou a área de seu depósito, na rodovia Presidente Dutra, em 150%, para 250 000 metros quadrados (hoje, o local abriga 12 000 veículos, guardados por 60 seguranças e 45 câmeras de vídeo). Outro importante leiloeiro, Ronaldo Milan, com 21 anos de profissão, ampliou seu depósito, na rodovia Raposo Tavares, em mais de sete vezes, para 148 000 metros quadrados. Mesmo os menores, como Arcangelo Francavilla, há 36 anos no ramo, estão correndo atrás de áreas próprias para depósito. A procura por pátios mostra como se sustentam os leiloeiros na capital: imóveis são o filé mignon, enquanto os automóveis garantem o pão de cada dia. São realizados na cidade pelo menos quatro leilões de veículos diariamente. “Os imóveis dispararam em importância a partir de 1999”, diz Carlos Alberto Frazão, leiloeiro há 20 anos. E imóveis para vender significa, quase sempre, um banco ou uma seguradora por trás do negócio. Os bancos respondem por metade dos leilões conduzidos por Frazão e por 80% de sua receita.

Para ganhar a confiança de empresas que nunca promoveram pregões, os leiloeiros usam dois argumentos poderosos. O primeiro é a praticidade. “O leilão não aceita reclamações posteriores do comprador”, diz Di Lascio, da Arno. “Como esperamos juntar uma quantidade razoável de material para levar a leilão, algumas máquinas ficam desligadas durante um bom tempo. Teríamos muito trabalho se tivéssemos de dar alguma garantia ao comprador.” O segundo argumento é contábil. Manter um ativo é caro, e dar baixa dele no balanço é um procedimento que requer cuidado. O leiloeiro se encarrega de que a venda seja feita de forma rápida — impedindo grande deterioração do bem — e transparente, facilitando o serviço do contador.

Tudo isso não significa que o mercado de leilões já esteja maduro no Brasil. O jornal Primeiro Lance estima que o país realize mais de 10% de seu mercado potencial. Potencial que se perde, em parte, porque leilão ainda é visto como algo para especialistas. É fácil entender o porquê: não existe Procon no mundo do leilão. Equipamentos e veículos são expostos com antecedência e o comprador pode inspecioná-los à vontade, mas sem ligá-los. Há sempre o risco de a máquina não funcionar. “Às vezes a gente se dá mal. Compra e tem de jogar fora”, diz Michel Montanaro, dono da MW, revendedora de máquinas operatrizes. Montanaro está no ramo há 18 anos, freqüenta dois ou três leilões por mês, avalia o material com pelo menos dois dias de antecedência e ainda assim se dá mal de vez em quando. Imagine o que pode acontecer com um comprador ocasional. Some-se a isso o medo de passar por otário numa disputa com compradores profissionais. Em muitos pregões, a competição franca dá lugar a certa “camaradagem” entre compradores que se vêem quase todos os dias.

Não é só o medo do consumidor final que trava o mercado. No meio corporativo, pouca gente percebe que os leilões têm uma função nobre na cadeia dos negócios. O estado de São Paulo tem assustadores índices de mortalidade de pequenas e médias empresas. Delas, 32% fecham no primeiro ano de existência, 56% até o terceiro, 71% até o quinto. Imagine a quantidade de insumos que se perderiam se não houvesse um meio dinâmico de recolocá-los no sistema produtivo. É o que fazem os leilões. Equipamento industrial que viraria lixo é aproveitado numa empresa menor, que não teria condições de comprá-lo de outra forma. Esta, por sua vez, o repassará a outra empresa menor ainda, e assim sucessivamente. Extrai-se o máximo de produtividade de cada insumo — mas só quando alguém se lembra de fazer leilão, o que ainda não é regra. “No Brasil não há cultura de recuperação de capital com equipamento usado”, diz Ronaldo Santoro (sobrinho de Sodré Santoro), sócio-diretor do SuperBid, site de leilões pela internet. “A empresa vende o equipamento pelo valor residual e até paga para que alguém o remova.”

Quem se livra de um equipamento dessa forma não sabe que há na cidade uma legião de viciados em pregões que teriam imenso prazer em disputar a tal máquina. Esse vício acaba gerando casos folclóricos que mais parecem histórias de pescador. Como a de um negociante de sucata que estava por acaso num leilão de arte e, só para não perder a viagem, acabou arrematando uma obra preciosa. “Vou botar lá no ferro-velho”, teria dito o rei da sucata, diante dos estupefatos (e bem menos ricos) colecionadores de arte.